The Bird.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Pedaço de Intrínseca para o Thomas.



A amplitude negra de seus olhos revertia-se num luzir inexistente, sob a gelidez que permeia os vestígios de um último pensamento. Encaravam-no com irrevogável displicência, um misto de sentimentos sobrepostos pela reprovação. Pois sim, a reprovação exacerbada reinou em sua mente até mesmo nos segundos antecedentes ao delírio de Ambrose, ao período da transição de ambos. O vislumbre dos olhos de Lúcifer, entretanto, revelava a projeção enigmática de seu interior, o demônio escarnecido sob o templo cristão, unindo o inferno ao paraíso – contraditoriamente irônico. Hipócrita.
            Amanhecia. O luzir celestial refletia-se nas paredes sem vida, estrelas branco-pérola agitando-se no plano liso como diamantes. Vagarosamente engolidas pela incandescente luminosidade solar, desapareceram. O céu encontrava-se límpido, índigo, aguardando nuvens em sua exímia maciez para enfeitá-lo. Ambrose encantou-se com o despertar selvagem, ruídos provindos da floresta ecoando em sua percepção. Inebriava-lhe o aroma da aurora – orvalho sobre plantas vívidas. Respirou.
            Repentinamente, retirando-o do transe, o linear singelo dos lábios de Lúcifer bailou na proclamação de uma conjectura. Língua entre dentes, observava-o com uma resplandecente indagação. Questionamentos disformes abarrotavam seu ímpeto de pronúncia – um interrogatório silencioso difundindo-se na curiosidade da atmosfera. Ambrose elevou suas mãos gélidas à face, trêmulo. A verdade escapou oscilante de sua respiração: não restavam mais obstáculos ilusórios que impediam a revelação do suspense. Não havia tardar. O labirinto enfim alcançava seu término, e Ambrose encontrava-se no centro, desprovido de escapatória.
            O vazio reinou no interior do cômodo – inerente paz. A iminência de uma entrevista inquietava-lhe, tornando doloroso e relembrar de fatos mortos, acontecimentos cuja devolução à caixa surreal do verídico lhe fartava. Seu corpo encontrava-se enrijecido, sob o soar de um coração quase de pedra, que lhe pertencia. Tensão.
            Aterrorizava-lhe a modorrenta silhueta do companheiro. Invariavelmente belo, inebriava-lhe sua existência pulsante, tal qual a luminosidade bruxuleante em meio a um oceano tempestuoso de emoções. Seus cabelos negros remetiam-no a contemplação de outro mar ondulante em cetim: Saphir. Oh, sim, recordava-se intuitivamente de ter visto a destemida criatura anteriormente, há infindáveis e ressequidos anos aparentando pertencer à outra encarnação. A face de Lúcifer era magra, pálida, indiferente. Miseravelmente agradável, encarava-o de maneira perturbadora, as maçãs de sua carne elevando-se num sorriso arrebatador, revelando todos os dentes pontiagudos e opacos. Estremeceu. Que segredos poderia ocultar a sabedoria inabalável de seu rosto? Mistérios clamam pela vida. A energia existencial de Ambrose dissipava-se em seu perfume, à sombra de meticulosas expressões próprias. Encontrava-se apaixonado pelo perigo. “Devore-me o temor. Salve-me.”
            Ambrose podia sentir o peso das mãos de Lúcifer sobre as dele, pressionando-as, incentivando-o a discursar. O leve tocar agitou-lhe. Encontrava-se temeroso e inclinado sobre travesseiros, os cabelos louros ondulando seu embaçado campo de visão. Não compreendia. O que era ele? Que milagroso componente tornaria sua narrativa intensamente atraente, sagaz? “Responda-me. Liberte-me”.
            - Deus está aqui? – perguntou deliberadamente, agitado. Na realidade, não aguardava respostas alguma, ou, pelo menos, qualquer esclarecimento plausível que dele provenha. O que poderia um demônio conhecer sobre Deus, os céus? Oh não, questionava-se a si mesmo, sob a necessidade particular pelo divino, o conhecimento oculto que jamais possuiria – obsessão diária e irreversível, o veneno ácido que flui junto ao sangue, corroendo a tênue sanidade interior.
            - Onipresente.
            Ambrose assustou-se com a surpreendente réplica. Os grandes olhos pensativos de Lúcifer o encararam de modo sóbrio, chamas ofuscantes em seus próprios olhos. Esquivou-se cautelosamente de sua presença, deixando seu corpo apoiar-se sob caráter confortável no elegante encosto de veludo da cadeira. Compenetrado em uma fisionomia zombeteira, sorriu novamente.
            - Como pode dizê-lo? Não é um demônio, ou o próprio diabo? Não provém do inferno? – questionou Ambrose.
            Lúcifer gargalhou.
            - Olhe para o céu. Crê que Deus seja o criador supremo? E sendo este o seu cargo, poderia Satanás sobressair à Sua força? Não. Um é filho do outro, assim como a minha origem também provém de Deus. Na realidade, como é intimamente sabido, tudo existente nesse universo que se estende através dos espelhos é apenas um reflexo do simbolismo humano, de suas crenças enfadonhas e por vezes fantásticas. Atente para o que lhe digo, Ambrose. Não a rio sem vau, nem geração sem mal. Olhe para mim agora, e conte-me sua história...