A amplitude
negra de seus olhos revertia-se num luzir inexistente, sob a gelidez que
permeia os vestígios de um último pensamento. Encaravam-no com irrevogável
displicência, um misto de sentimentos sobrepostos pela reprovação. Pois sim, a
reprovação exacerbada reinou em sua mente até mesmo nos segundos antecedentes
ao delírio de Ambrose, ao período da transição de ambos. O vislumbre dos olhos
de Lúcifer, entretanto, revelava a projeção enigmática de seu interior, o
demônio escarnecido sob o templo cristão, unindo o inferno ao paraíso –
contraditoriamente irônico. Hipócrita.
Amanhecia. O luzir celestial
refletia-se nas paredes sem vida, estrelas branco-pérola agitando-se no plano
liso como diamantes. Vagarosamente engolidas pela incandescente luminosidade
solar, desapareceram. O céu encontrava-se límpido, índigo, aguardando nuvens em
sua exímia maciez para enfeitá-lo. Ambrose encantou-se com o despertar
selvagem, ruídos provindos da floresta ecoando em sua percepção. Inebriava-lhe
o aroma da aurora – orvalho sobre plantas vívidas. Respirou.
Repentinamente, retirando-o do
transe, o linear singelo dos lábios de Lúcifer bailou na proclamação de uma conjectura.
Língua entre dentes, observava-o com uma resplandecente indagação.
Questionamentos disformes abarrotavam seu ímpeto de pronúncia – um
interrogatório silencioso difundindo-se na curiosidade da atmosfera. Ambrose
elevou suas mãos gélidas à face, trêmulo. A verdade escapou oscilante de sua
respiração: não restavam mais obstáculos ilusórios que impediam a revelação do
suspense. Não havia tardar. O labirinto enfim alcançava seu término, e Ambrose
encontrava-se no centro, desprovido de escapatória.
O vazio reinou no interior do cômodo
– inerente paz. A iminência de uma entrevista inquietava-lhe, tornando doloroso
e relembrar de fatos mortos, acontecimentos cuja devolução à caixa surreal do
verídico lhe fartava. Seu corpo encontrava-se enrijecido, sob o soar de um
coração quase de pedra, que lhe pertencia. Tensão.
Aterrorizava-lhe a modorrenta
silhueta do companheiro. Invariavelmente belo, inebriava-lhe sua existência
pulsante, tal qual a luminosidade bruxuleante em meio a um oceano tempestuoso
de emoções. Seus cabelos negros remetiam-no a contemplação de outro mar
ondulante em cetim: Saphir. Oh, sim, recordava-se intuitivamente de ter visto a
destemida criatura anteriormente, há infindáveis e ressequidos anos aparentando
pertencer à outra encarnação. A face de Lúcifer era magra, pálida, indiferente.
Miseravelmente agradável, encarava-o de maneira perturbadora, as maçãs de sua
carne elevando-se num sorriso arrebatador, revelando todos os dentes
pontiagudos e opacos. Estremeceu. Que segredos poderia ocultar a sabedoria
inabalável de seu rosto? Mistérios clamam pela vida. A energia existencial de
Ambrose dissipava-se em seu perfume, à sombra de meticulosas expressões
próprias. Encontrava-se apaixonado pelo perigo. “Devore-me o temor. Salve-me.”
Ambrose podia sentir o peso das mãos
de Lúcifer sobre as dele, pressionando-as, incentivando-o a discursar. O leve
tocar agitou-lhe. Encontrava-se temeroso e inclinado sobre travesseiros, os
cabelos louros ondulando seu embaçado campo de visão. Não compreendia. O que era
ele? Que milagroso componente tornaria sua narrativa intensamente atraente,
sagaz? “Responda-me. Liberte-me”.
- Deus está aqui? – perguntou
deliberadamente, agitado. Na realidade, não aguardava respostas alguma, ou,
pelo menos, qualquer esclarecimento plausível que dele provenha. O que poderia um demônio conhecer sobre Deus, os
céus? Oh não, questionava-se a si mesmo, sob a necessidade particular pelo
divino, o conhecimento oculto que jamais possuiria – obsessão diária e
irreversível, o veneno ácido que flui junto ao sangue, corroendo a tênue
sanidade interior.
- Onipresente.
Ambrose assustou-se com a
surpreendente réplica. Os grandes olhos pensativos de Lúcifer o encararam de
modo sóbrio, chamas ofuscantes em seus próprios olhos. Esquivou-se cautelosamente
de sua presença, deixando seu corpo apoiar-se sob caráter confortável no
elegante encosto de veludo da cadeira. Compenetrado em uma fisionomia
zombeteira, sorriu novamente.
- Como pode dizê-lo? Não é um
demônio, ou o próprio diabo? Não provém do inferno? – questionou Ambrose.
Lúcifer gargalhou.
- Olhe para o céu. Crê que Deus seja
o criador supremo? E sendo este o seu cargo, poderia Satanás sobressair à Sua
força? Não. Um é filho do outro, assim como a minha origem também provém de
Deus. Na realidade, como é intimamente sabido, tudo existente nesse universo
que se estende através dos espelhos é apenas um reflexo do simbolismo humano,
de suas crenças enfadonhas e por vezes fantásticas. Atente para o que lhe digo,
Ambrose. Não a rio sem vau, nem geração sem mal. Olhe para mim agora, e
conte-me sua história...